sábado, 24 de fevereiro de 2007

Acabar com a Religião? Por que não.

Talvez não seja claro para muitos ateus, que professam o fim da fé e das religiões, o que implica defender um mundo totalmente secular.

Afirmam que nada seria melhor e mais eficaz para exterminar todos os grandes males mundiais. De acordo com estes ateus através da argumentação, lógica, discussão pública, alterações sociais e da luta pacífica (e violenta em alguns casos) poderemos um dia viver num mundo sem Deuses, Religiões, Dogmas ou Fé. Mas será isso moralmente defensável?
Será que Dawkins tem razão quando se refere à Religião como «A raiz de todo o Mal»?
Será isto verdade? Que implicações terá uma conclusão como esta?
E que premissas têm de se verificar para que possamos aceitar lutar por um mundo assim?

Como é lógico, para compreender o problema, não basta definir o termo "religião" como tudo aquilo que produz o mal.
Seria circular.
Se alguém apresentasse um exemplo de um bem que resultasse da religião, como a Obra da Madre Teresa em Calcutá, bastaria dizer que isso não era exactamente algo com uma origem realmente religiosa, já que, a verdadeira Religião (por definição) é raiz de todo o mal. Assim, o exemplo de Calcutá não encaixaria na nossa definição de um acto religioso. E mesmo que apresentássemos um outro contra-exemplo de atrocidades cometidas por regimes seculares como os de Pol Pot, Mao, Estaline ou Hitler poderia ser argumentado que esses regimes são outras formas de Religião já que a verdadeira Religião é a raiz de todo o Mal.


É uma variante do famoso argumento do no true scotsman, para melhor o apresentar vejamos o que escreveu Antony Flew em 1975:

"Imagine Hamish McDonald, a Scotsman, sitting down with his Press and Journal and seeing an article about how the "Brighton Sex Maniac Strikes Again." Hamish is shocked and declares, "No Scotsman would do such a thing." The next day he sits down to read his Press a
nd Journal again and this time finds an article about an Aberdeen man (a Scotsman) whose brutal actions make the Brighton sex maniac seem almost gentlemanly. This fact shows that Hamish was wrong in his opinion, but is he going to admit this? Not likely, this time he says, "No true Scotsman would do such a thing."

Este argumento é uma falácia, já que a definição de Escocês não depende de se cometer ou não crimes horrorosos. Mas, para mantermos a afirmação de que nenhum Escocês cometeria um crime desses, temos de alterar a sua definição caso nos deparemos com uma excepção: alteramos Escocês para verdadeiro Escocês e pronto, resolvemos o problema. Ou seja um Escocês deixaria de ser alguém que nasceu na Escócia (ou que tem a nacionalidade escocesa) para passar a incluir mais um requisito: não cometer atrocidades; mas isso era exactamente o que queríamos testar! Alterando a definição, estamos a excluir (ou incluir) arbitrariamente do termo em causa precisamente aquilo que queremos testar, é no mínimo estúpido e no máximo desonesto.

O mais curioso é que este exemplo foi utilizado por A. Flew, um ateu convicto, para criticar as definições de termos como cristãos ou religiosos e, de facto, expôs alguns argumentos falaciosos que defendem que nada de mal pode resultar das Religiões. Actualmente são raras as pessoas que acreditam nisso, é um lugar comum criticar a Inquisição, a opressão de Galileu Galilei, etc mesmo pela própria hierarquia da Igreja Católica.
Triste é deparar-me tantas vezes com a incompreensão desta falácia quando discuto com certos ateus fervorosos sobre a independência do Mal.
Quando o erro serve para provar que a Religião só pode ser a "raiz de todos os males" aí, a falácia do verdadeiro Escocês, já não é tão evidente.

No entanto nada disto nos ajuda a perceber se um mundo sem religiões ficaria ou não melhor.
Para se poder concluir que um mundo totalmente secular seria preferível a um mundo religioso temos de provar cinco pressupostos:


1º O que todas as religiões acreditam é falso (ou que mesmo não sendo falso, ou não se conseguindo provar a sua falsidade, é preferível vivermos como se fosse).

2º A existência da Religião tem mais efeitos negativos do que positivos na humanidade.

3º O mal resultante ao se destruir a Religião não produzirá um mal ainda maior que o que resultaria deixando tudo como estava.

4º O modelo alternativo que propomos para o mundo é melhor que o actual paradigma.

5º É possível acabar com a Religião.


Basta que uma destas premissas não seja verdade para não valer a pena lutar pela abolição da Religião das nossas sociedades. Os cinco pontos são independentes e necessários para que se conclua que a humanidade não pode, nem deve tolerar esse "mal". Só assim reunimos as condições necessárias e suficientes para valer a pena acabar com a Religião, bastaria que apenas um ponto não se verificasse para que isso não fosse defensável.

Assim sendo, suspeito sempre de ataques contra a Igreja que se limitam a apresentar um conjunto de males resultantes da Fé seguidos de uma lista dos gloriosos feitos da Ciência para depois concluir que a primeira é horrorosa e que a segunda é a Luz do mundo.

Caso se verifique que as afirmações professadas pelas religiões (de todas ou só de uma, é indiferente) são verdade, o que devemos fazer? Será que se se provar que existe um Deus que é, segundo os nossos critérios humanos, mau e cruel, deveríamos tentar acabar com a Religião e enterrar a cabeça na areia? Ou deveríamos comportar-nos como Ele ordenou mesmo não compreendendo a Sua razão?

Torna-se então imperativo mostrar que o núcleo das crenças religiosas é falso, caso contrário é bom que nos comportemos como Deus nos aconselha.
(Em caso de dúvida parece ser mais prudente seguir o exemplo da aposta Pascal?)

De qualquer forma, o ponto 1 parece-me bastante difícil de provar já que muitas das afirmações religiosas são por definição não “falseabilisáveis”. Nunca poderemos provar que algo imaterial não existe (ou que é falso) já que é impossível executar testes em algo imaterial como almas, anjos, ou Deus.

Quando muito podemos dizer que Popper tinha razão, e que, respeitando a sua definição de Ciência o que não é empiricamente refutável não diz respeito à Ciência. Neste caso, seguindo uma abordagem estritamente científica, comporta-mo-nos como se as afirmações religiosas que não são empiricamente refutáveis fossem falsas. Mas seria desejável abordar todas as nossas questões quotidianas do ponto de vista estritamente científico? O que pode a ciência estritamente empírica dizer-nos sobre a estética e a Arte? Sobre o amor e a paixão? Não são todas estas realidades imateriais e empiricamente não refutáveis? Serão por isso menos válidas e vitais à humanidade?

Viveríamos num mundo melhor caso partíssemos todos do pressuposto que essas realidades não existem, ou não são úteis, só porque a Ciência não é a melhor linguagem para as descrever? Duvido.

A segunda premissa afirma que a Religião origina mais mal que bem. Mais uma vez é uma afirmação necessária mas não suficiente para justificar o fim das Religiões.

Não chega dizer que em nome da religião se fizeram (ou se fazem) coisas terríveis. Dizer mal da religião é facílimo (se as nossas fontes forem o jornal nacional da TVI), mas isso é uma enorme simplificação do que é ser-se religioso.
Eu também posso fazer uma lista gigantesca sobre: tsunamis, afogamentos, naufrágios, desastres ecológicos, cheias, secas, tempestades, chuvas ácidas, epidemias devidas a águas contaminadas, dizer que a maior parte da água que existe não é potável e que a maior parte da que o é não está facilmente acessível já que se encontra sob a forma de gelo, etc…. Nada disto prova que água faz mais mal do que bem à humanidade.

Com o ateísmo militante acontece algo de semelhante, assume-se que basta dizer mal das religiões para se poder concluir que são algo que se deve combater.

Duvido sinceramente que o bem que resulta (e deve resultar) das religiões (principalmente de algumas delas) não exceda o mal que pode (e não deveria) surgir das religiões. E já agora, duvido ainda mais que alguém consiga fazer um honesto balanço de todos os males e bens que já resultaram de todas as religiões sem dar em louco primeiro.

Relativamente ao ponto 3 pensemos num caso análogo (para não sairmos dos líquidos): o da proibição das bebidas alcoólicas. Para surpresa de muitos, hoje em dia, até sabemos que o consumo do bebidas alcoólicas também produz alguns benefícios na nossa saúde mas o que é claro para todos é que o álcool produz mais efeitos negativos que positivos. Agora, porque não proibimos o álcool já que ele faz mais mal que bem?
Uma explicação simples (que está por detrás de muitas das leis actuais) é que o mal que resultaria de o proibir seria ainda maior que o que é provocado pelo seu consumo livre. Basta recordar a lei seca na América do século passado.
Torna-se então evidente que ao advogarmos o fim da religião como um bem a priori devemos contabilizar o mal que resultaria da implementação desse bem. Mais uma vez nunca vi nenhum estudo que se debruçasse seriamente sobre este assunto.

Se não estivermos certos do ponto 3 como podemos propor o fim da Fé?

O ponto 3 e o ponto 4 podem parecer o mesmo mas no quarto refiro-me a uma realidade alternativa onde a Ciência ocuparia o lugar da Religião. Desta forma, penso que estamos longe de aceitar a Ciência como única forma de lidar com o mundo. O senso comum poderá ser, neste caso, um bom conselheiro. Não passa pela cabeça de ninguém dizer que viveríamos melhor se a Arte (ou a Politica, ou o Direito, ou até a Filosofia, etc) fosse substituída pela experimentação e deduções lógicas da Ciência pura. Seria ridículo dizer que viveríamos melhor, seria sem dúvida diferente, mas não estou nada convencido que seria melhor, viveríamos bem pior até. Ora, se este exemplo é válido para todas as áreas onde a Ciência pouco pode ajudar, porque insistem alguns ateus em tentar apresentar como desejável um mundo alternativo onde a Ciência ocuparia o lugar da Religião? Utilizamos instintivamente estes critérios todos os dias para quase tudo mas quando nos deparamos com assuntos que nos revoltam, parece que já não são válidos.

Analisemos agora o último ponto. Na realidade, o ponto 5, nem tem de ser verdadeiro para concluirmos que a Religião é um mal, só o coloquei como premissa porque é indispensável caso defendamos um mundo totalmente livre de todas as religiões.

Talvez este seja o obstáculo mais prático de todos. Mesmo que os quatro anteriores sejam verdade pode ser que seja impraticável (mesmo a longo prazo) a erradicação total de qualquer pensamento religioso da face da Terra. Talvez os (ou alguns) Seres Humanos necessitem de algo irracional e inexplicável como a Fé para viver. Talvez a crença irracional em algo que nos transcenda seja tão vital para alguns seres humanos como o oxigénio e, assim sendo, que direito temos de impor a nossa verdade ao mundo. Mesmo que se prove que a Religião é actualmente um mal a combater, ela poderá ter desempenhado um papel indispensável como paradigma moral básico em determinadas circunstâncias Históricas. Talvez.

Agora, no que diz respeito a um mundo sem Religião não vejo (da parte de quem deseja fervorosamente viver num mundo ateu) provas nenhumas de nada disto, vejo apenas meros palpites baseados em: suposições, especulações, convicção pessoal, desejos impulsivos, experiências individuais... Bom, resumindo: pura fé...

…e é aí que os meus caros amigos ateus militantes não estão em muito melhor posição que os fundamentalistas religiosos ao afirmarem (sem o demonstrar) que um mundo como eles o imaginam seria muito melhor para todos, só revelam menos coragem ao ponto de não se fazerem explodir pelo que acreditam.

2 comentários:

luí disse...

Excelente post !!

No se si el "fundamentalismo" ateu llegará a los niveles del integrismo islámico, espero que no, pero me desconforta leer algunos articulos en los que se generaliza demasiado y hay una sombra de odio.

He crecido en una sociedad católica , y además muy practicante de los cultos, ese odio hacia las demás religiones nunca lo he percibido.
No creo que ninguna de las religiones sea negativa en sus fundamento, los hombres y las mujeres somos los que hemos utilizado la religión de manerea equivocada. Aprovechandonos de ella para nuestros fines personales.
Bien sean gobiernos o educadores.

Lo imprescindible es que la gente tenga opciones y pueda decidir.
Crecer y evolucionar no solo implica a los 7 años seamos capaces de manejar una playstation y que vayamos a Marte.
Implica tener la suficiente inteligencia para saber distinguir el bien del mal.
La valentia para unirnos y enfrentarnos a los abusos cometidos siempre por hombres,la religion es un concepto abstracto y no actúa.

La fé no mataba indigenas en el s XV o XVI, eran las espadas, empuñadas por hombres y para obtener poder.
Lo que ocurre es que si malo es seguir al pie de la letra las enseñanzas de los libros , igual de negativo es rebuscar entre libros escritos en otras epocas y extrapolar eso al momento actual .

Es como no fiarse de la medicina porque ha utilizado sanguijuelas y panaceas para sanar enfermedades. Porque ha efectuado lobotomias para curar la histeria . O no ir al dentista porque eran los barberos ambulantes quien arrancaban los dientes.

O decir que los barcos no son fiables porque se hundió el Titanic.

Hemos evolucionado o no? O vamos a medir cada cosa con una vara?

Por que no miramos los proyectos de ayuda humanitaria que tiene en marcha la iglesia católica? Yo no miro mas lejos , aqui a mi lado,si eres toxicomano y no eres famoso o rico,puedes tener una oportunidad solo gracias a ong vinculadas a la iglesia católica.
Y no te preguntan si crees en Dios, ni te hacen comulgar.Si puedes dar dinero lo das y si no igual te ayudan.

Los hijos de inmigrantes marroquís van a colegios de monjitas.
Y ninguno se ha cambiado de religión para acceder a la enseñanza.

La ayuda humanitaria a inmigrantes en mayor parte se canaliza por medio de Cáritas que es una asociacion dependiente del Iglesia ,sustentada por donativos de particulares en su mayoria católicos y son las parroquias quien ceden sus instalaciones para todo.
Una legión de señoras de edad mediana, despues de oir misa se afanan en lavar,pasar a ferro y coser botones a ropa usada para que a nadie le falte nada.
Que mal tiene si rezan el rosario mientras ayudan a los demas?
Algunas celebraciones de nacimientos de niños musulmanes se celebran en los mismos locales donde nuestros pequeños se preparan para recibir la comunión.
Ya estuve comiendo pasteles primorosamente elaborados por mujeres marroquis mientras cantaba canciones de Navidad con el cura dando palmas.

Pero eso no es llamativo para los ateos. Es lo que se espera de los cristianos.

Por supuesto que algunos cristianos han hecho el mal, por supuesto que la Iglesia católica estuvo al lado de Franco en la dictadura, pero tambien ha estado al lado de Eta.

Son hombres, circunstancias y epocas.
Solo hace falta que libremente pensemos, decidamos y nos quedemos con lo positivo.
Yo no se si creo en dios, pero por mucho que me expliquen tampoco creo que todo surgió por azar.

Pero si me quedo con los valores cristianos como el amor a los demas , el respeto a los padres ,la tolerancia a los que no piensan como yo, la paciencia , la defensa de los oprimidos, de los que lloran, el consuelo a los enfermos, el perdón, no matar,no robar.
Valores que son comunes al islamismo por lo que he podido saber.

Y por supuesto: santificar las fiestas que en esto estamos todos de acuerdo.

Besitos.

Rui leprechaun disse...

Ena, grande artigo!!! :)

Genericamente concordo com tudo quanto foi exposto e não me parece que haja alguém com bom senso e inteligência que pretenda acabar com as religiões organizadas. Isso até já foi tentado, inutilmente, como se sabe.

Seja como for, há algo ainda mais básico do que a religião em si, que é a espiritualidade. Ou seja, alguém educado inteiramente à margem da religião - filho de pais não crentes, por exemplo - pode, contudo, desenvolver uma espiritualidade muito mais abrangente do que qualquer crença religiosa mais sectária e particular.

Isso acontece aliás com muitos cientistas e está perfeitamente descrito nesta famosa citação de Einstein:

The most beautiful and most profound experience is the sensation of the mystical. It is the sower of all true science. He to whom this emotion is a stranger, who can no longer wonder and stand rapt in awe, is as good as dead. To know that what is impenetrable to us really exists, manifesting itself as the highest wisdom and the most radiant beauty which our dull faculties can comprehend only in their primitive forms - this knowledge, this feeling is at the center of true religiousness.

Albert Einstein - "The Merging of Spirit and Science"

E ainda:

The religion of the future will be a cosmic religion. It should transcend personal God and avoid dogma and theology. Covering both the natural and the spiritual, it should be based on a religious sense arising from the experience of all things natural and spiritual as a meaningful unity. Buddhism answers this description. If there is any religion that could cope with modern scientific needs it would be Buddhism.

A questão é que religião e espiritualidade têm um elo importante, embora esta seja muitíssimo mais vasta e ultrapasse largamente o âmbito meramente religioso. Logo, talvez para muitas pessoas a muleta religiosa seja indispensável para atingirem esse patamar espiritual que é mais importante do que a fé religiosa em si.

Pessoalmente, acredito no ecumenismo entre as religiões e, mais ainda, na espiritualidade que as transcende e cada vez se manifesta mais no século presente.

Quanto à Ciência, creio que não pode subsistir sem a Filosofia ou Metafísica. O conhecimento da realidade material só por si é insuficiente, se formos incapazes de reflectir sobre a nossa relação com o Universo e o que dele vamos desvendando. E uma vez que o "imaterial" está, por definição, para além do critério científico, há sempre um vasto campo onde a Filosofia - incluindo aqui o pensamento religioso - permanecerá intocável.