domingo, 30 de outubro de 2011

A vergonha no fim de Kadafi

Copio o que escrevi há quase cinco anos atrás, aquando da execução de Sadam:


"2006 termina com uma lição: aprendemos muito pouco.

Quem condena um culpado não pode, como penitência, seguir-lhe o exemplo."

Agora, estamos piores.

Porque, quem executa alguém não julgado deixa de ser suficientemente diferente para se considerar moralmente superior.


E é tudo isto ainda mais triste, pois não tendo havido nenhum julgamento, Kadafi morre inocente nas mãos de um novo regime que não nasce sem mácula.

Entrevista RTP África











sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Relatórios e tretas...




Recentemente recebi, de um bom amigo, notícias sobre um relatório já com alguns anos.

É um relatório sobre a evolução dos números e práticas de aborto no mundo, desde 1995 até 2003. Foi executado pelo Guttmacher Institute que tem por objectivo: 
"The Institute’s overarching goal is to ensure the highest standard of sexual and reproductive health for all people worldwide".


Dito isto e perante este tipo de estudos, eu não durmo descansado depois de saber que segundo esse mesmo relatório, já morreram bem mais de mil milhões de crianças antes de nascerem e uma das principais recomendações é "Expand access to legal abortion and ensure that safe and legal abortion services are available to women in need." 
Reparem que nem referem prazos nem datas limite, o importante é fazer mais e em mais sítios com mais meios. Para acabar com o aborto, vamos... expandir o acesso a aborto legal! 

Grande ideia, como é que ninguém pensou nisto antes?


Mais, neste relatório não há nem uma só palavra sobre a política de filho único na China e muito menos sobre a política de aborto forçado e/ou esterilização forçada, que ainda hoje é uma realidade no país que mais abortos faz em todo o mundo. Nada disso, o que faz falta é "Expand access to legal abortion and ensure that safe and legal abortion services are available to women in need."


Depois, tenho pena que o relatório não inclua os dados desde os primeiros anos em que o aborto foi legalizado no respectivos países, refere-se apenas a dados posteriores a 1995. Podem ver que pelo menos em alguns países aconteceu uma explosão nos número de abortos: http://conjurado.blogspot.com/2007/01/espanha-estados-unidos-e-gr-bretenha.html (os gráficos do link referem-se a abortos registados oficialmente desde os primeiros anos da legalização nos respectivos países e não apenas a dados posteriores a 1995).


Mas, e mesmo que tudo isto não fosse verdade e bastante para enojar qualquer um, saltam ainda à vista uma completa falta de coerência na argumentação e uma confusão clarissima.


A incoerência vem da aparente preocupação do relatório em demonstrar que a legalização ajuda a baixar o número total de abortos.
Como se isso fosse um problema para quem acha que tudo isto deve ser apenas uma questão de consciência da mãe. 
Vejamos se não é verdade...
Se partimos do princípio que não há problema em legalizar o aborto porque é uma questão de consciência, então por que razão estamos preocupados com o facto de a legalização fazer ou não baixar o número total de abortos?
Ou seja, se acho que fumar charros é apenas uma questão de consciência individual, por que razão me hei de me preocupar se a sua legalização baixa ou aumenta o número de charrados? Se fumar um charro é tão legitimo como fazer um aborto eu quero lá saber se há mais ou menos charrados(as) a engravidar e a abortar do que no ano passado!


Para ser claro, cá vai o raciocínio:

Nenhum de nós se deve preocupar em baixar o número de acções legítimas.
Fazer um aborto é legítimo.
Logo, não nos devemos ralar com a diminuição do número de abortos.


Há algum erro que eu não esteja a ver?

O que é verdade é que, por mais coerente que seja, nunca ouvi ninguém defender algo parecido à conclusão do silogismo. Todos dizem que estão muito empenhados em fazer baixar o número de abortos e toda gente julga que isso é óbvio e nada tem que ver com "lado da barricada" em que se está. Ora isso não é bem verdade.
Se não há nenhum erro em nenhuma das premissas, temos de aceitar a conclusão e, de facto, pode perfeitamente deixar de fazer qualquer sentido continuarmos preocupados com as variações dos números de uma prática que consideramos legítima.
  
Podemos até cair numa posição tão caricata quanto coerente ao acabarmos por nos preocupar com a diminuição do número de abortos. Se há menos mulheres a praticar abortos então talvez esteja a haver uma pressão social para diminuir uma acção que é perfeitamente legítima, individual e que não deve nunca ser contrariada. Se andamos a fazer menos abortos talvez seja porque a sociedade se anda a meter na vida das mulheres e devemos contrariar esta intromissão inaceitável... ou, ou talvez isto seja ir longe demais.

No entanto é tudo resultado da confusão que mencionei antes.
Ela existe, é clara e baralha legitimidade com conveniência.

Mesmo que a legalização fizesse diminuir o número de abortos ela só deveria ter lugar se fosse legítima.
Uma lei para existir tem de ser legítima e conveniente, ambas as condições são necessárias e só juntas são suficientes para que possamos legislar algo.
Por mais conveniente que fosse para identificar as pessoas envolvidas ou fazer diminuir as doenças sexualmente transmissíveis, é por não ser legítimo violar crianças que nunca legalizaremos a "pedofilia em establecimiento legal de saúde". Até podia ser conveniente para fazer baixar o número de DST mas nunca seria legítimo porque está em causa um dano grave na vida de outra pessoa (faz lembrar alguma outra coisa?). 



São sempre necessárias as duas condições: legitimidade e conveniência.
E é por não ser conveniente que não se despedem centenas de milhares de funcionários públicos para reduzir o défice do estado. Esta medida é tão legítima como cortar dois meses de salários anuais e o nosso parlamento tem toda a legitimidade depois de eleito para poder fazer qualquer uma das coisas. No entanto parecem estar a optar pela segunda hipótese por acharem que, embora tão legitima como a primeira, é mais conveniente para todos. Mais uma vez só quando temos as duas condições satisfeitas é que devemos aceitar uma medida.


O ponto fundamental é saber se o aborto é legítimo ou não. Se é legítimo, a sua legalização resulta do facto de ser legítimo e não do facto de fazer diminuir a sua prática. E se o aborto é ilegítimo, como podemos legitimá-lo? Ou basta dizer que é extremamente conveniente para passar a ser legítimo?


Dizer "vamos legalizar X mesmo sabendo que é ilegítimo porque se o fizermos isso é muito conveniente pois ajuda a diminuir esse mesmo X", não me parece que seja uma boa prática pois deixa a porta aberta a todo o tipo de legalização. Trocando, na frase anterior, "X" por "pedofilia", "infanticídio" ou "aborto até aos 9 meses" talvez ajude a obviar o ridículo da questão. 
Se não o aceitamos nos três exemplos anteriores por que razão está já tudo bem quando falamos em "aborto até às Y semanas"? O que mudou?


Concluindo. Fico contente que, se os números do relatório estiverem correctos, desde 1995 até 2003, o número de abortos legais esteja alegadamente a diminuir no mundo mas julgo que as políticas de planeamento familiar e aumento global das condições de vida sejam as verdadeiras responsáveis por esse aparente facto: apesar do aborto ser legal e não por causa de o ser!
Mas continuo muito triste por saber que, todos os anos, morrem mais de 40 milhões de crianças antes de nascerem, porque a sociedade onde todos vivemos apenas tem para oferecer a uma mãe desesperada e grávida um aborto e não uma vida digna para deixar crescer o seu filho.
No final de lerem este texto devem ter sido abortadas a pedido da mãe, mais de 400 crianças! 
É tão simples que até arrepia, mais de um aborto por segundo é muita morte para tão pouca desculpa.  

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Ceci n'est pas un stormtrooper

Qu'est-ce?



Fósseis de Moçambique, terra da boa terra.

Desde 2009 que uma equipa de investigadores Portugueses e Moçambicanos tem vindo a desenvolver, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, uma campanha de estudo dos fósseis de Moçambique intitulada Projecto PalNiassa (www.palniassa.org).

Há qualquer coisa de diferente na cor e no cheiro de África. Não é fácil saber o quê, mas existe. Quando se chega, há uma ligação com a terra, com as pessoas, com o ar e, sem se saber muito bem porquê, não conseguimos deixar de nos sentir em casa. O título "terra da boa gente" dado por Vasco da Gama após ter aportado em Moçambique no séc. XV é, ainda hoje, justamente célebre. Muito embora a fama da gente tenha vingado, pouco se sabe sobre a terra que essa mesma gente pisa. O solo de Moçambique é fecundo em recursos minerais e quase sempre fértil, mas há ainda muito por descobrir.


África, e especialmente Moçambique, não tem sido alvo de intensas campanhas paleontológicas. Muitas são as zonas com conflitos armados e é comum existirem áreas interditas por estarem minadas. Assim, e pela primeira vez, Moçambique conta com um projecto internacional exclusivamente dedicado ao estudo da paleontologia de vertebrados em todo o seu território - o projecto PalNiassa.

A equipa do projecto é composta por investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (Rui Castanhinha), do Museu Nacional de Geologia (Maputo), da Universidade Eduardo Mondlane, da Universidade Metodista do Sul (Dalas) e do Museu da Lourinhã. O projecto tem por objectivos fazer investigação, preservar o património paleontológico moçambicano e divulgar a ciência. Este triângulo de investigação, conservação, e educação é central em todo o trabalho desenvolvido pela equipa PalNiassa.

No âmbito da investigação foram recolhidos na província do Niassa mais de meia tonelada de fósseis que foram transportados para Portugal, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da TAP. Os animais descobertos encontram-se em excelentes condições e estão extremamente completos. A sua maioria pertence ao grupo evolutivo de onde surgiram todos os mamíferos: os sinapsídeos. Viveram há aproximadamente 250 milhões de anos, no final do Pérmico, período geológico que antecedeu a maior extinção visível no registo geológico. Julga-se que tenham desaparecido na transição do Pérmico para o Triásico mais de 95% de toda a biodiversidade do planeta, logo, importa compreender a fauna que habitou o sudoeste africano, numa altura em que todos os continentes se encontravam ligados.

Todo o material encontrado é património da República de Moçambique e regressará ao país de origem com técnicos formados, instalações museológicas para os receber e conhecimento científico para enriquecer o património não material moçambicano. Para além de vários artigos em curso e já submetidos a revistas científicas,  na passada semana um dos fósseis mais completos foi analisado por tomografia de raios-X nas instalações alemãs do sincrotrão de Hamburgo (www.desy.de) de forma a reconstruir virtualmente o seu interior.


Neste momento existe um estagiário moçambicano (Salimo Mario) a receber formação em preparação de fósseis no Museu da Lourinhã com uma bolsa financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Este será o primeiro preparador de fósseis da história de Moçambique e estão em curso planos para  a construção do laboratório de estudos paleontológicos em Maputo. Alguns destes fósseis podem ser observados no Museu Nacional de Geologia em Maputo bem como, até dia 9 de Outubro, numa exposição temporária do Museu da Lourinhã.

O projecto PalNiassa continuará por mais anos sempre em busca de mais descobertas, mais cientistas e melhores recursos para o desenvolvimento da ciência em Moçambique.


Por: Rui Castanhinha

Publicado na Newsletter da Fundação Calouste Gulbenkian, Outubro de 2011