
Talvez não seja claro para muitos ateus, que professam o fim da fé e das religiões, o que implica defender um mundo totalmente secular.
Afirmam que nada seria melhor e mais eficaz para exterminar todos os grandes males mundiais. De acordo com estes ateus através da argumentação, lógica, discussão pública, alterações sociais e da luta pacífica (e violenta em alguns casos) poderemos um dia viver num mundo sem Deuses, Religiões, Dogmas ou Fé. Mas será isso moralmente defensável?
Será que Dawkins tem razão quando se refere à Religião como «A raiz de todo o Mal»?
Será isto verdade? Que implicações terá uma conclusão como esta?
E que premissas têm de se verificar para que possamos aceitar lutar por um mundo assim?
Como é lógico, para compreender o problema, não basta definir o termo "religião" como tudo aquilo que produz o mal.
Seria circular.
Se alguém apresentasse um exemplo de um bem que resultasse da religião, como a Obra da Madre Teresa em Calcutá, bastaria dizer que isso não era exactamente algo com uma origem realmente religiosa, já que, a verdadeira Religião (por definição) é raiz de todo o mal. Assim, o exemplo de Calcutá não encaixaria na nossa definição de um acto religioso. E mesmo que apresentássemos um outro contra-exemplo de atrocidades cometidas por regimes seculares como os de Pol Pot, Mao, Estaline ou Hitler poderia ser argumentado que esses regimes são outras formas de Religião já que a verdadeira Religião é a raiz de todo o Mal.
É uma variante do famoso argumento do no true scotsman, para melhor o apresentar vejamos o que escreveu Antony Flew em 1975:
"Imagine Hamish McDonald, a Scotsman, sitting down with his Press and Journal and seeing an article about how the "Brighton Sex Maniac Strikes Again." Hamish is shocked and declares, "No Scotsman would do such a thing." The next day he sits down to read his Press and Journal again and this time finds an article about an Aberdeen man (a Scotsman) whose brutal actions make the Brighton sex maniac seem almost gentlemanly. This fact shows that Hamish was wrong in his opinion, but is he going to admit this? Not likely, this time he says, "No true Scotsman would do such a thing."
Este argumento é uma falácia, já que a definição de Escocês não depende de se cometer ou não crimes horrorosos. Mas, para mantermos a afirmação de que nenhum Escocês cometeria um crime desses, temos de alterar a sua definição caso nos deparemos com uma excepção: alteramos Escocês para verdadeiro Escocês e pronto, resolvemos o problema. Ou seja um Escocês deixaria de ser alguém que nasceu na Escócia (ou que tem a nacionalidade escocesa) para passar a incluir mais um requisito: não cometer atrocidades; mas isso era exactamente o que queríamos testar! Alterando a definição, estamos a excluir (ou incluir) arbitrariamente do termo em causa precisamente aquilo que queremos testar, é no mínimo estúpido e no máximo desonesto.
O mais curioso é que este exemplo foi utilizado por A. Flew, um ateu convicto, para criticar as definições de termos como cristãos ou religiosos e, de facto, expôs alguns argumentos falaciosos que defendem que nada de mal pode resultar das Religiões. Actualmente são raras as pessoas que acreditam nisso, é um lugar comum criticar a Inquisição, a opressão de Galileu Galilei, etc mesmo pela própria hierarquia da Igreja Católica.
Triste é deparar-me tantas vezes com a incompreensão desta falácia quando discuto com certos ateus fervorosos sobre a independência do Mal.
Quando o erro serve para provar que a Religião só pode ser a "raiz de todos os males" aí, a falácia do verdadeiro Escocês, já não é tão evidente.
No entanto nada disto nos ajuda a perceber se um mundo sem religiões ficaria ou não melhor.
Para se poder concluir que um mundo totalmente secular seria preferível a um mundo religioso temos de provar cinco pressupostos:
1º O que todas as religiões acreditam é falso (ou que mesmo não sendo falso, ou não se conseguindo provar a sua falsidade, é preferível vivermos como se fosse).
2º A existência da Religião tem mais efeitos negativos do que positivos na humanidade.
3º O mal resultante ao se destruir a Religião não produzirá um mal ainda maior que o que resultaria deixando tudo como estava.
4º O modelo alternativo que propomos para o mundo é melhor que o actual paradigma.
5º É possível acabar com a Religião.
Basta que uma destas premissas não seja verdade para não valer a pena lutar pela abolição da Religião das nossas sociedades. Os cinco pontos são independentes e necessários para que se conclua que a humanidade não pode, nem deve tolerar esse "mal". Só assim reunimos as condições necessárias e suficientes para valer a pena acabar com a Religião, bastaria que apenas um ponto não se verificasse para que isso não fosse defensável.
Assim sendo, suspeito sempre de ataques contra a Igreja que se limitam a apresentar um conjunto de males resultantes da Fé seguidos de uma lista dos gloriosos feitos da Ciência para depois concluir que a primeira é horrorosa e que a segunda é a Luz do mundo.
Caso se verifique que as afirmações professadas pelas religiões (de todas ou só de uma, é indiferente) são verdade, o que devemos fazer? Será que se se provar que existe um Deus que é, segundo os nossos critérios humanos, mau e cruel, deveríamos tentar acabar com a Religião e enterrar a cabeça na areia? Ou deveríamos comportar-nos como Ele ordenou mesmo não compreendendo a Sua razão?
Torna-se então imperativo mostrar que o núcleo das crenças religiosas é falso, caso contrário é bom que nos comportemos como Deus nos aconselha.
(Em caso de dúvida parece ser mais prudente seguir o exemplo da aposta Pascal?)
De qualquer forma, o ponto 1 parece-me bastante difícil de provar já que muitas das afirmações religiosas são por definição não “falseabilisáveis”. Nunca poderemos provar que algo imaterial não existe (ou que é falso) já que é impossível executar testes em algo imaterial como almas, anjos, ou Deus.
Quando muito podemos dizer que Popper tinha razão, e que, respeitando a sua definição de Ciência o que não é empiricamente refutável não diz respeito à Ciência. Neste caso, seguindo uma abordagem estritamente científica, comporta-mo-nos como se as afirmações religiosas que não são empiricamente refutáveis fossem falsas. Mas seria desejável abordar todas as nossas questões quotidianas do ponto de vista estritamente científico? O que pode a ciência estritamente empírica dizer-nos sobre a estética e a Arte? Sobre o amor e a paixão? Não são todas estas realidades imateriais e empiricamente não refutáveis? Serão por isso menos válidas e vitais à humanidade?
Viveríamos num mundo melhor caso partíssemos todos do pressuposto que essas realidades não existem, ou não são úteis, só porque a Ciência não é a melhor linguagem para as descrever? Duvido.
A segunda premissa afirma que a Religião origina mais mal que bem. Mais uma vez é uma afirmação necessária mas não suficiente para justificar o fim das Religiões.
Não chega dizer que em nome da religião se fizeram (ou se fazem) coisas terríveis. Dizer mal da religião é facílimo (se as nossas fontes forem o jornal nacional da TVI), mas isso é uma enorme simplificação do que é ser-se religioso.
Eu também posso fazer uma lista gigantesca sobre: tsunamis, afogamentos, naufrágios, desastres ecológicos, cheias, secas, tempestades, chuvas ácidas, epidemias devidas a águas contaminadas, dizer que a maior parte da água que existe não é potável e que a maior parte da que o é não está facilmente acessível já que se encontra sob a forma de gelo, etc…. Nada disto prova que água faz mais mal do que bem à humanidade.
Com o ateísmo militante acontece algo de semelhante, assume-se que basta dizer mal das religiões para se poder concluir que são algo que se deve combater.
Duvido sinceramente que o bem que resulta (e deve resultar) das religiões (principalmente de algumas delas) não exceda o mal que pode (e não deveria) surgir das religiões. E já agora, duvido ainda mais que alguém consiga fazer um honesto balanço de todos os males e bens que já resultaram de todas as religiões sem dar em louco primeiro.
Relativamente ao ponto 3 pensemos num caso análogo (para não sairmos dos líquidos): o da proibição das bebidas alcoólicas. Para surpresa de muitos, hoje em dia, até sabemos que o consumo do bebidas alcoólicas também produz alguns benefícios na nossa saúde mas o que é claro para todos é que o álcool produz mais efeitos negativos que positivos. Agora, porque não proibimos o álcool já que ele faz mais mal que bem?
Uma explicação simples (que está por detrás de muitas das leis actuais) é que o mal que resultaria de o proibir seria ainda maior que o que é provocado pelo seu consumo livre. Basta recordar a lei seca na América do século passado.
Torna-se então evidente que ao advogarmos o fim da religião como um bem a priori devemos contabilizar o mal que resultaria da implementação desse bem. Mais uma vez nunca vi nenhum estudo que se debruçasse seriamente sobre este assunto.
Se não estivermos certos do ponto 3 como podemos propor o fim da Fé?
O ponto 3 e o ponto 4 podem parecer o mesmo mas no quarto refiro-me a uma realidade alternativa onde a Ciência ocuparia o lugar da Religião. Desta forma, penso que estamos longe de aceitar a Ciência como única forma de lidar com o mundo. O senso comum poderá ser, neste caso, um bom conselheiro. Não passa pela cabeça de ninguém dizer que viveríamos melhor se a Arte (ou a Politica, ou o Direito, ou até a Filosofia, etc) fosse substituída pela experimentação e deduções lógicas da Ciência pura. Seria ridículo dizer que viveríamos melhor, seria sem dúvida diferente, mas não estou nada convencido que seria melhor, viveríamos bem pior até. Ora, se este exemplo é válido para todas as áreas onde a Ciência pouco pode ajudar, porque insistem alguns ateus em tentar apresentar como desejável um mundo alternativo onde a Ciência ocuparia o lugar da Religião? Utilizamos instintivamente estes critérios todos os dias para quase tudo mas quando nos deparamos com assuntos que nos revoltam, parece que já não são válidos.
Analisemos agora o último ponto. Na realidade, o ponto 5, nem tem de ser verdadeiro para concluirmos que a Religião é um mal, só o coloquei como premissa porque é indispensável caso defendamos um mundo totalmente livre de todas as religiões.
Talvez este seja o obstáculo mais prático de todos. Mesmo que os quatro anteriores sejam verdade pode ser que seja impraticável (mesmo a longo prazo) a erradicação total de qualquer pensamento religioso da face da Terra. Talvez os (ou alguns) Seres Humanos necessitem de algo irracional e inexplicável como a Fé para viver. Talvez a crença irracional em algo que nos transcenda seja tão vital para alguns seres humanos como o oxigénio e, assim sendo, que direito temos de impor a nossa verdade ao mundo. Mesmo que se prove que a Religião é actualmente um mal a combater, ela poderá ter desempenhado um papel indispensável como paradigma moral básico em determinadas circunstâncias Históricas. Talvez.
Agora, no que diz respeito a um mundo sem Religião não vejo (da parte de quem deseja fervorosamente viver num mundo ateu) provas nenhumas de nada disto, vejo apenas meros palpites baseados em: suposições, especulações, convicção pessoal, desejos impulsivos, experiências individuais... Bom, resumindo: pura fé...
…e é aí que os meus caros amigos ateus militantes não estão em muito melhor posição que os fundamentalistas religiosos ao afirmarem (sem o demonstrar) que um mundo como eles o imaginam seria muito melhor para todos, só revelam menos coragem ao ponto de não se fazerem explodir pelo que acreditam.