segunda-feira, 15 de outubro de 2007

À conversa sobre a Evolução...








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Escrevo-te este mail por uma razão, lançar-te um desafio!! Há uns fins-de-semana atrás estava eu a ver o bbc vida selvagem e, talvez por sentir alguma nostalgia das discussões evolutivas que houve, deparei-me com uma situação, a qual nunca me tinha lembrado. Trata a história disto: Pinguins imperadores, uma espécie que tem a particularidade de viver num dos locais mais agrestes do planeta (Antártida) e por isso se depreenda rapidamente que a selecção natural possa actuar nestes locais de forma talvez mais intensa.

Nesta espécie, ao contrario de muitas aves, não se faz um ninho (por razoes obvias), o que obriga sempre a que um progenitor "segure" um único ovo por cima das patas e encaixado numa prega de pele que o protege contra as intempéries, enquanto o outro se desloca vários quilómetros do local de reprodução para apanhar peixe que levará até ao parceiro e futuro rebento. Convém referir que a comunicação através de chamamentos sonoros é fulcral na identificação de indivíduos do mesmo casal e mesmo entre a cria e o seu progenitor.


Como é de prever, a sobrevivência do pinto neste ambiente é difícil, sendo que muitos morrem nos primeiros dias. Isto para o casal tem uma consequência enorme, pois uma vez que apenas põem 1ovo/ano, é o investimento numa época reprodutiva que se perde. Igualmente, os progenitores não têm a sua sobrevivência facilitada. Esta espécie é muito predada por outros animais (orcas, focas et al.), pelo que é também frequente haverem crias órfãs.
E eis que, finalmente, se sucede algo extraordinário. Aparentemente, as progenitoras que ficam sem pintos para criar, perseguem as crias órfãs para que estas passem a ser suas. Tal é a sua necessidade de maternidade, que chegam a lutar entre si, e podem mesmo vir a matar a cria por esmagamento (a sua forma de dizer: "esta é minha!", é basicamente colocarem-se em cima dela!!!).

A pergunta impõe-se: como explicar a adopção à luz da teoria do gene egoísta? Como se entende que um indivíduo tenha tal necessidade de proteger genes que não sejam os seus? Que esteja de tal forma necessitado que está capaz de sacrificar um enorme esforço da sua parte para criar pintos que não são os seus nem que tenham qualquer razão de parentesco, a não ser, pertencerem à mesma colónia?


Penso que o egoísmo que se vê neste caso passa pela satisfação pessoal do progenitor em ter um filho, mesmo que lhe custe uma elevada quantidade de esforço em criá-lo, não sendo dele. Este facto parece ser corroborado pelo facto de se suceder o esmagamento de pintos com a “corrida” que as mães fazem.
Mas não deveria a selecção natural nestes casos ter favorecido um comportamento que resultaria num maior investimento em massa corporal nesse ano (egoisticamente) para que no próximo ano pudessem ter uma cria mais saudável e resistente, do que, ao invés, gastar as suas energias criando uma cria órfã (comportamento aparentemente altruísta)? Ou será o bem-estar emocional de um indivíduo é superior à sua predisposição genética para o egoísmo puro e simples?



Deixo-te com as dúvidas e fico à espera de resposta e noticias tuas.



Até lá, um abraço e um desejo de felicidades,


Pedro Salgueiro








Oi Pedro!

Como é bom receber noticias tuas, principalmente desta forma. Parabéns por manteres os miolos a funcionar… é algo cada vez mais raro nos dias que correm.



(...)

Pensemos então sobre o teu desafio. Deixa-me só fazer um reparo para te lembrar que não sou etólogo e que, assim sendo, posso facilmente meter o pé na poça. De qualquer modo não resisto em meter uma colherada, cá vamos.



Se bem percebo não consegues resolver o aparente paradoxo que leva genes egoístas a codificarem comportamentos altruístas. Nada há de paradoxal nisto, lembra-te que desde que esses comportamentos contribuam para fazer aumentar o número médio de genes egoístas no pool genético tudo se manterá dessa forma, até que as condições se alterem.



Em especial no teu exemplo dos pinguins imperador temos (julgo eu) duas causas para duas consequências. Há que sublinhar que os pinguins quando perdem os seus próprios filhos têm dois tipos de comportamentos distintos que necessitam de explicação: primeiro procuram cuidar dos filhos órfãos, segundo fazem-no descontroladamente o que pode por vezes levar à morte por esmagamento dessas crias.



Comecemos pelo segundo caso. Aí concordo contigo, parece-me uma consequência inadvertida de uma forte pressão selectiva que foi escolhendo os pais mais obcecados por cuidar de pinguins acabados de nascer. Parece que não houve uma pressão de sentido oposto a esta que fizesse com que os pais (depois de perderem a sua cria) soubessem distinguir perfeitamente os seus filhos dos dos outros. Basta pensar que esses genes egoístas têm outros adversários egoístas nos corpos das crias órfãs. Estes últimos podem maximizar a sua descendência se codificarem algum comportamento que mimetize o pio das crias falecidas. Poderia haver aqui uma luta entre os interesses dos genes dos filhos e dos genes dos pais. Enfim aqui seria necessário investigar, só posso especular. Mas confesso que estou globalmente de acordo com a tua explicação. Ou seja, o ambiente seleccionou só os pais que tinham genes que codificavam para um comportamento obcessivo-compulsivo por chocar pinguins bebes, já que, só pais assim é que poderiam cuidar e aquecer os seus filhos num ambiente tão extremo. E, como consequência, veio por arrasto uma loucura que pode até levar à morte desses bebes.



Assim quanto à tua pergunta :” Mas não deveria a selecção natural nestes casos ter favorecido um comportamento que resultaria num maior investimento em massa corporal nesse ano (egoisticamente) para que no próximo ano pudessem ter uma cria mais saudável e resistente, do que, ao invés, gastar as suas energias criando uma cria órfã (comportamento aparentemente altruísta)?” A minha resposta só pode ser um redondo não. E é não porque por um lado esse “maior investimento em massa corporal” pode só ser possível à custa de um comportamento mais regrado e controlado por parte dos pinguins adultos, e já vimos que pinguins calmos e não obcecados por chocar bebes, tem menores probabilidades de deixar descendentes. Ou seja, a evolução só é perfeita na mediada que ajusta os equilíbrios possíveis e mais estáveis a que os organismos se podem “moldar”. Se esse comportamento de esquecer os filhos órfãos dos vizinhos fosse independente do facto de haver uma real necessidade de só existirem pais obcecados então seria espectável vermos os pinguins e deixarem morrer os outros bebes. Duvido que os genes que codificam uma coisa não interfiram na outra, assim sendo, como esses genes devem só “jogar em equipa” podem gerar comportamentos antagónicos e estáveis se a pressão selectiva por ser obcessivo-compulsivo for mais forte do que a de controlar essa obsessão e cuidar só de si. A primeira pressão deve pesar mais e arrastar a outra como consequência. Aliás tu estás lá bem perto quando fazes a pergunta seguinte… ….só te falta lá um pormenor, isto é, ficaria correcta desta forma: “… o bem-estar emocional de um indivíduo [resultante de genes egoístas] é superior à sua predisposição genética para o egoísmo puro e simples [codificada por outros genes egoístas mas que neste contexto são mais “fracos”]” . Vês a diferença?

O real problema aqui era perceber porque esmagam os filhos adoptivos e não porque cuidam deles. Acho que ficou resolvido.



Relativamente ao primeiro caso sobre o porquê de os pinguins se darem ao trabalho de chocar filhos dos outros “in the first place”. Penso que solução reside numa suposição errada que fazes sem te dares conta. Ao dizeres: “Como se entende que um indivíduo tenha tal necessidade de proteger genes que não sejam os seus? Que esteja de tal forma necessitado que está capaz de sacrificar um enorme esforço da sua parte para criar pintos que não são os seus nem que tenham qualquer razão de parentesco, a não ser, pertencerem à mesma colónia?” partes do princípio que os genes das crias que vão ser chocadas por pais adoptivos não têm outros genes iguaizinhos nos corpos desses mesmos pais adoptivos. Ora eu suspeito que isso não seja bem assim. Aliás duvido que essas colónias não sejam altamente homozigóticas ou que não haja uma elevada taxa de inbreeding . E sabes o que isto significa (se for verdade)? … Vá lá …….. vá…… Bingo! Imensos genes em comum, não só com os seus próprios filhos mas também com os filhos dos vizinhos. Estes são afinal das contas, meios irmãos, primos, tios, etc… Basta fazer correr uns programazinhos informáticos sobre as análises de DNA dessas meta-populações para ver se tenho ou não razão.



Resumindo: Nada há de paradoxal e confuso no comportamento altruísta dos pinguins imperiais à luz da teoria do gene egoísta. É precisamente porque a selecção natural favorece os genes que tem tendência para serem mais (inteligentemente) egoístas é que temos pinguins com comportamentos altruístas. Os genes não hesitam em ser altruístas se esses comportamentos favorecerem os seus interesses egoístas para deixarem mais cópias de si mesmos na geração seguinte.





Que te parece? Convencido?



Um abraço,





Rui Castanhinha

5 comentários:

Anónimo disse...

Oias... isto é um bocadinho cedo para conversas sobre evolução, e confesso que a minha especialidade "é mais bolos". No entanto como o meu cérebro está ainda demasiadamente liberto, uma vez que estou cheio de sono e a capacidade de estar a sonhar é bastante queria só deixar uns reparos...
Pelo que concluo nestes casos existe apenas um interesse em manter uma cria (a todo o custo)... talvez a "mais adaptada" uma vez que foi a que sobreviveu. Por outro lado poderá dizer-se que a selecção natural actua também no sentido de escolher melhores pais para estas crias (os mais obcecados terão mais hipóteses de proteger e cuidar da cria) e isto joga em ambos os sentidos: quer no sentido dos pais verdadeiros (aos quais lhes é feito um teste à sua capacidade de protecção), quer no sentido dos "adoptivos-à-força". Neste caso, se se conseguirem sobrepor aos pais verdadeiros poderá significar que estarão mais aptos para criar o pequeno rebento que, à partida será melhorzito que o seu próprio filho, já defunto. Mas porquê investir tanto na agressividade a "todo o custo" que poderá causar a morte do pequeno messias?

bem... votos de boas conversas evolutivas, e tudo de bom!
abraços

Anónimo disse...

O especial nas aves que formam colónias é que o comportamento monogâmico está ausente e isso afecta o modo como as coisas funcionam. Tanto as fêmeas como os machos "enriquecem" FREQUENTEMENTE o seu “pool” genético investindo em cópulas extra-casal, quando o seu parceiro/a não está por perto. Seguindo este raciocínio, o esforço investido em conseguir substituir uma cria falecida que afinal de contas é filha da colónia e não de apenas dois indivíduos (visto que as relações extra-casal são comuns), não é uma adopção no verdadeiro sentido da palavra. A agressividade que poderá estar subjacente a este comportamento poderá sim explicar-se através de forças evolutivas, sendo seleccionados os pais cujos genes os direccionavam para uma rápida substituição da perdida prole. Porque a cria que o casal vir a “adoptar” pode ser um dos seus descendentes e portadora da herança genética do pai ou daquele outro cujos espermatozóides a mãe achou que valesse a pena “guardar” (acima de tudo trata-se de uma competição entre genes!). Uma vantagem evolutiva deste tipo de comportamentos pode ser a de não haver vencedores (criar a descendência até à idade adulta) nem vencidos (ao arranjar alternativas, se possível para compensar a perda). Deste modo, as adaptações originam contra-adaptações, as medidas, contra-medidas e, em qualquer espécie que se reproduza sexualmente, cada reprodução (consequentemente qualquer cria que chegue à idade adulta) representa uma vitória matematicamente exacta para ambos os progenitores, para a colónia e, no seu conjunto, para a espécie.

Anónimo disse...

Epa, eu não sou engenheiro nem nada, mas será que os pinguins fêmeas lutam pelos orfãos por causa da comida e melhor tratamento que terão dos machos que vão buscar a comida, é um bocado como na nossa sociedade em que as vezes em orfanatos o mais importante é as comissões e pensões pelas crianças e depois as condições delas é o que se sabe, será que esse gene egoísta não será uma hipótese de sobrevivência do próprio progenitor que não lhe interessa qual o orfão mas sim ter um para viver melhor?

Anónimo disse...

Olá Rui, o blog está muito interessante. Identifico-me com algumas formas de pensar que abundam aqui e rareiam na Tugalândia, de forma que devo passar por aqui mais vezes para desanuviar da falta de estímulo intelectual que o meu dia-a-dia tem padecido.
Esta questão posta pelo Pedro interesecta dois campos fantásticos: a Psicologia e a Evolução, ou mais concretamente, um campo que emergiu da sociobiologia que se chama actualmente de Psicologia Evolutiva. Porque afinal os nossos sentimentos (alguém me sabe dizer o que são os sentimentos?) são o resultado de um processo selectivo.
Para quem se interessa por estes temas, vejam:
http://www.kli.ac.at/theorylab/index.html
Falemos de causas e efeitos
CAUSA: stress comportamental devido à perda da cria, com o qual os pais estão geneticamente programados para se vincularem. O pinguim não parece estar muito convencido da proposta do Pedro de desviar a sua necessidade de vínculo para uma relação obsessiva-compulsiva com a comida. Vínculo é um termo científico. Pode-se desconstrui-lo em sistemas sensoriais, neuronais e hormonais, mas este termo vai direito ao assunto.
Há quem tenha estudado até que ponto é preponderante nas tomadas de decisão. Há uma investigação que se tornou famosa, em que um macaco recém-nascido é separado da mãe e colocado numa jaula. Nesta existem dois modelos da progenitora, um de ferro com uma tetina (que dá leite) e outro revestido a alcatifa, sem tetina. O macaco dirigia-se sempre e imediatamente para o modelo alcatifado, indo esporadicamente ao modelo de ferro para se alimentar. A necessidade de vínculo entre pais e filhos, caso seja interrompida, leva a grandes cargas de stress e como tal estão desenvolvidos mecanismos de compensação, que tiveram no decorrer do tempo evolutivo o teste à sua eficácia.
Acho que estamos perante um desses casos. O investimento energético que exige o vínculo a uma cria indiscriminada é preferível ao stress (sofrimento psicológico) de ter esse impulso e não o poder agir em conformidade.
Os progenitores que não consigam adoptar uma cria poderão adoptar mecanismos fisiológicos e comportamentais que ponham em causa a sua eficácia na altura de acasalar novamente. Fazendo a análise das pressões selectivas que levam a este comportamento, este comportamento aparentemente altruísta resulta muito do factor “necessidade de vínculo” e secalhar nada do factor “este também tem alguns dos meus genes”. A máscara cai quando as fêmeas pseudo-altruistas preferem que o pinto morra a que este sobreviva a cargo de outra fêmea. O pinto é encarado como um espécie de objecto que se não for possuído não serve de nada.
Generalizando, o sofrimento psicológico é uma característica geralmente prejudicial para o portador, e logo para o gene. Torna-o menos competitivo e pode levar a comportamentos desviantes.
Agora imaginemos que um macho, após falhar a adopção, compense a perda do vínculo pontapeando freneticamente pedaços de gelo. E na próxima época de acasalamento, já não é capaz de estar concentrado em seduzir fêmeas, mas sim em repetir o que fez nos últimos meses. O seu cérebro já não responde a estímulos da mesma forma que a maioria dos seus co-específicos e perderá fitness por isso.
Mas, e se as fêmeas interpretam o seu comportamento um sinal de “bons genes”, ou boa forma física? Se o seu comportamento as estimula a acasalar com ele? Aí a pressão selectiva supostamente desvantajosa irá permitir-lhe acesso muito mais facilitado a parceiras de elevada qualidade.
A reprodução sexual é na sua base um conflito, onde cada sexo procura obter do outro o que pretende, com o menor custo possível. E nesta luta, o parecer que se tem é muito importante, senão o pavão não se dava ao trabalho de ter penas de quase um metro espetadas nas bordas do cu em forma de leque. Ele tem aquilo somente porque evolutivamente as fêmeas aprenderam a reconhecer essa característica como um avaliador do elevado potencial genético do macho.
Para quem se interessa por estes temas, vejam:
http://www.kli.ac.at/theorylab/index.html
Eu li algures que "it's only when you look at an ant through a magnifying glass on a sunny day that you realize how often they burst into flames".
Um cientista tem de ter a capacidade de despir a sua antropogenia, a sua educação, as influências que a sua sociedade lhe imprimiu na forma de pensar, e a pressão que este olhar causa na sua vida. Na minha opinião é um exercício de perspectiva apaixonante, que permite olhar para o passado, presente e futuro e encontrar um sentido. E nós biólogos, em particular, temos o grande exemplo de perspectiva, paciência e mente livre que foi Darwin.
Mas quando me ponho a pensar no caso dos pinguins, mais penso que somos mesmo parecidos com eles.

Unknown disse...

Samurai:

Oabrigado pelo teu longo comentário...
Só queria fazer-te uma pergunta:
Quem é tu?


Cheers,