quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

400 anos depois um obrigado a Vieira.

Entrando pois na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto; e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heraclito: eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma cousa e direi outra. Confesso, que a primeira propriedade do racional é o risível: e digo, que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há-de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.

Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa contìnuamente mudam a cena, aonde cada Sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios; que homem haverá (se acaso é homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras. Mas se Demócrito era um homem tão grande entre os homens e um filósofo tão sábio e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria, não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos. E com razão; porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo e que se ria deste mundo. Como pois se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas cousas, que via e chorava Heraclito?

A mim, Senhores, me parece, que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada um ao seu modo. Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre: logo nunca ria. A consequência parece difícil e é evidente.
O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração e cessando a novidade ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário e se vê sempre não pode causar admiração nem novidade; segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não havia matéria que motivasse o riso. Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma cousa que visse ou encontrasse de novo; porque sempre e em todo o lugar ria, e quando saía de casa já saía rindo; logo ria do que já sabia, logo ria sem novidade nem admiração; logo o que nele parecia riso não era riso. Confirma-se mais esta verdade com o motivo e intenção de Demócrito; porque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: tudo o de que Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo não se ria; e se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam riso? Já disse que era pranto e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora vede.

Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é 166 sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova da primeira e segunda diferença de chorar com lágrimas, ou sem elas, é notável o exemplo, que refere Heródoto de Psamnito, rei do Egipto. Perdendo Psamnito o reino, viu em primeiro lugar suas filhas vestidas como escravas e não chorou, viu depois seu filho primogénito descalço e carregado de ferros com as mãos atadas e um freio na boca e não chorou; e vendo este mesmo Psamnito e com o mesmo coração, que um seu antigo criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas. Oh grande rei e grande intérprete da natureza! Chora com lágrimas a miséria do criado e sem lágrimas a desgraça dos filhos; assim respondeu ele à pergunta de Cambises: Domestica mala graviora sunt, quam ut lacrimas recipiant. Com o mesmo pensamento, não menos régio, nem menos varonil, Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada, proibiu as lágrimas às damas de Tróia, dizendo-lhes assim:

Quid effuso genas fletu rigatis? Levita perpessae sumus, si flenda patimur.


A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair
pelos olhos, não é grande dor; por isso não chorava Demócrito; e como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria. Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofia e da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva faz cegar; a dor, que não é excessiva, rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte a tristeza, se é moderada, faz chorar; se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar e não só desta as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre do cativeiro, apareceu ao seu exército, que era o romano:

In laetitiam tota castra effusa sunt, ut praegaudio militibus omnibus lacrimae
manarent, diz Plutarco.

Pois se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza porque não será causa do riso? A ironia tem contrária significação do que soa; o riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas irònicamente, porque o seu riso era nascido de tristeza, e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas, como aquele de quem disse Estácio:

Lacrimosos impia risus audiit.

Na guerra morrem muitos soldados rindo; e a razão é, diz Aristóteles, porque são feridos no
diafragma. Não ria Demócrito como contente, ria como ferido: recebia dentro do peito todos
os golpes do mundo e tão malferido ria. Os olhos com injustiça se poderão queixar desta minha filosofia: o pranto chamava-se assim, porque se batiam as mãos uma com a outra, quando se chorava; porque para chorar não são precisos os olhos, e não seria próvida a natureza se, havendo sido a origem de tantos pesares, lhes desse um só desafogo; e se choram as mãos, a
boca porque não há-de chorar? Heraclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz; e este era o pranto de Demócrito.
De sorte, que na minha consideração, não só Heraclito, mas Demócrito chorava, só com a diferença, de que o pranto de Heraclito era mais natural, o pranto de Demócrito mais esquisito; e
tudo merece este mundo, digno de novos e esquisitos prantos, para ser bastantemente chorado.
Mas porque esta minha suposição me separa do problema e pode parecer, que, como muitas vezes sucede, me aparte da opinião comum para fugir da dificuldade: seja embora o riso de Demócrito verdadeiro e próprio riso, apareçam 167 em juízo um e outro filósofo, para que ouvidos ambos, se veja claramente a razão de cada um, e confio do merecimento da causa que será tão justa a sentença, que Demócrito saia chorando, e Heraclito rindo.
Séneca, no livro De Tranquillitate, falando destes dous filósofos, dá a razão por que sempre ria
um e chorava outro, com estas judiciosas palavras:

Hic, quoties in publicam processerat, flebat, ille ridebat: huic omnia, quae agimus, miseriae, illi ineptiae videbantur.

Demócrito ria, porque todas as cousas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.

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